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sábado, 9 de abril de 2011

Amor de Inseto


   O quarto semiescuro tinha apenas duas janelas e parecia vazio. Uma cama grande ocupava quase todo o espaço. Ao lado dela, uma pequenina mesa e uma barata que lentamente circundava um de seus pés de apoio. O animal era ou estava lento e não demonstrava medo, mesmo não estando sozinho ali.



Os dois que lhe faziam companhia estavam de pé e olhavam-se em silêncio.
Para uns e outros, o olhar direto é insustentável, mas não para eles. Ao menos, nunca fora. Afinal, há quem suporte um olhar por alguns segundos, mas não é fácil mantê-lo por um contato inteiro. As pessoas podem passar horas dizendo nada mas não conseguem sustentar um só olhar em silêncio. Eles não se falavam, mas sabiam estar ali para o amor.
Quantas são as coisas ditas por um olhar! Ter ciência do poder do olhar e do silêncio juntos já dá ao sujeito tamanha vantagem que só isso já vale uma noite longa de discussões inúteis.
Ao lado da cama, a pequena mesa fazia a base para uma taça que a mulher via quase vazia de vinho; e reparou na camiseta jogada bem perto. Poderia tê-la jogado sobre a taça e aí o estrago seria definitivo. Seguiu-se o remorso. Não tanto pelo devaneio superficial, pouco comum naquelas situações, e mais por se ver animada com a imagem da taça estilhaçando e do vinho todo se perdendo para sempre.
A barata, porém, a trouxe novamente à realidade quando se moveu em sua direção. Uma repulsa enorme assomou-se e foi logo substituída pela vontade de empurrar a taça e encerrar tudo aquilo.
O homem também movera-se em sua direção fazendo-a esquecer por hora, e mais uma vez em sua vida, a vontade de quebrar a taça. Dois passos dele e dois passos dela; ele para ela, ela para trás. Pararam e ela observou daquela distância, o tronco nu que tantas vezes lhe atraíra às mordidas e que agora estava diferente. Sentiu-se confusa e teve o ímpeto de ajudá-lo com o cinto e, por isso desta vez, aproximou-se. Mas um novo rastro do rasgar da barata a fez congelar. Ela quase podia ouvi-la gastando o chão.
Não sentia medo. Só repulsa que não desgarrava do seu peito e que subia para a garganta. Chegou a sentir o gosto do asco na boca, sem saber ao certo se do inseto ou de seu homem.
Ela se sabia bonita. Ele mesmo fazia sempre questão de olhá-la do mesmo jeito que a olhava agora. Sem uma palavra, ela o ouvia dizendo o quanto era linda, atraente e o quanto seu corpo o desconcertava. Esta maneira quieta de dizer as coisas sempre a excitava.
Mas agora havia uma barata.
No caso dele, pensou a mulher, os olhos gritam, esperneiam. Ou por outra, não os olhos, mas o olhar. Esta é a diferença e o que muda tudo. Os olhos são carne, mas é o olhar que dá vida e alma a eles. É o olhar que escancara as máscaras e coloca exposta a miscelânea de dogmas, de paradigmas, de preconceitos. Nas coisas de amor, o olho é inerte; o olhar vive e sofre metamorfose.
Ele aproximava-se mais e com a mão direita, tocou nela. Por sobre seu ombro, viu a barata ainda ao lado da mesa, inabalável. Olhou e não se ateve. Quis pegar a taça, para ele quase cheia, e beber um gole a mais do vinho, mas o calor e a textura daquela pele distraíram-no.
E como ali não houvesse som, o que fora e o que não fora dito ficou pelo nível dos olhos. De dentro, ele reclamou do silêncio e do vazio do olhar porque não havia naquele instante como ele perceber que era justamente o vazio que a mantinha longe de tanta dor inexplicável. A dor do distanciamento sem separação tornara-se menor quando ela, enfim, aceitou o vazio que tomara sua alma, a solidão do corpo poderoso, o silencio do seu próprio olhar. Mas isso, os motivos, ele jamais saberia.
Se tudo fica no nível do olhar, a primeira gota do ácido instilado é a pressuposição, o muito imaginar do que pensa o outro, a volúpia de se invadir a outra mente todos os dias. E era isso mesmo, pois em seu íntimo, ele também reclamava por não ser entendido na eloquência cúmplice do seu olhar e silêncio. Ela sabia e há muito culpava-se por isso.
Mas como saber se não fora mesmo entendido? Também ela deduziu a questão porque viu nele um vazio do olhar. Ou achava que via... Presumia.
Eis o demônio de dois. As relações em essência são presunçosas e recheadas de expectativas tortas, enquanto cada um tenta um meio de apaziguar suas frustração no outro. E ao final das contas, querer presumir é dar o primeiro passo no abismo.
Ela sentia toda a vontade dele que lhe crescia próxima, mas não se desligou do inseto. Como será o amor entre as baratas? Haveria algum tipo de prazer nisso? Um discreto calor deslizou com o pensamento por sua pele e foi aquilo o que mais aproximou-a de qualquer prazer. No mesmo instante, percebeu um toque gentil e pesado nas costas. Ela entristeceu por saber que já achara aquelas mãos mais leves e bem menos ásperas antes. Fechou os olhos e viu a taça se quebrando de novo.
Foi quando deixou que sua saia caísse ao chão, mecanicamente. Suas longas pernas postavam-se semicerradas como dois totens a guardar os portões de uma sala sagrada.
Fez um esforço, uma tentativa para desligar e sentir de novo a paixão do amor que já não sentia mais, como se, em exercício de repetição, pudesse recuperar o sentimento perdido. Só o que viu foi seu homem transfigurado em inseto que invadia um enorme portão a gritos e pontapés.
Assustada, abriu os olhos. Saltou para trás em busca da barata. Olhou o animal e olhou seu homem. Ela agora sabia de onde nascia o medo. Chorou pelos olhos, lágrimas não tão doloridas quanto as de sua alma.
Levantaram juntos a cabeça e já não se viam mais. O olhar tornou-se carne, perdeu vida.
Ato contínuo, ela aproximou-se da mesa e elevou o pé esquerdo descalço sobre a barata. Lentamente, pressionou o inseto contra o piso frio enquanto empurrava com o dedo indicador da mão a taça de vinho, para ela, já quase vazia.
O homem não pôde discernir entre os sons do estalar do inseto e do vidro que espalhava incontáveis cacos pelo chão. Ela, porém, deu-se por satisfeita por perceber que há muito não distinguia a repulsa nem tampouco os sons... e que fora graças a esta bruma toda que conseguiu enfim, um futuro.

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