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quinta-feira, 19 de agosto de 2010

A prostituta


- De onde você é? A cara não é boa, mas isso pode mudar. Não bebe nada, não quer pensar em outra coisa? Acho que você precisa relaxar.
- Acho que você acha demais. Se você quer beber algo, vá direto ao ponto, peça e eu pago.
Apesar da pouca simpatia para uma aproximação, ela aceitou. Pediu vodka com limão e sal. Duas doses se foram, simultâneas. A terceira ficou ali, nutrindo pensamentos. “Por que é que não me levanto e pronto? O que me faz ficar aqui? Tinha orgulho de ser observadora, sempre fora. Sensibilidade não lhe faltava. Não demorou para que tecesse um relatório completo do estranho. “Moreno, 35 anos de idade, porte atlético sem exagero, cerca de um e oitenta e olhos...” bem, naquele ambiente seria impossível saber e preferiu ignorar a cor dos olhos. Rosto de traços fortes, queixo largo e barba que já desistiu de nascer. Uma cicatriz na sobrancelha direita que interrompe a fileira de pêlos mas não prejudica o conjunto. Os ombros são mais estreitos do que ela gostaria. E pára por aí. Nunca gostou de seguir adiante. Medo de arriscar, em tudo.
- Mas, mas o que há com você, vai ficar aí olhando através de mim?, disse o estranho perguntando, sem meias palavras, se era efeito de beck. Ela negou não dando importância para a grosseria, afinal, estava fazendo o que mais gostava de fazer. Usava todo seu sentido apurado para deduzir a vida, a personalidade, a psique do outro. De alguma maneira, isso lhe dava segurança. Pouca, mas dava.
E continuou: “Na mão esquerda, a marca pálida do dedo anular denuncia aliança removida. Divórcio na certa. Sozinho a esta hora aqui, não pode ser outra coisa. Agora, o jeito grosso e de pouca conversa, e a forma tosca com que quase me comeu com os olhos quando minha saia subiu um pouco não deixa muita suspeita se é gay ou não. Certeza que não”. Se bem que sobre isso, nem tanta certeza assim. “Filhos? Um talvez, no máximo dois. Homem cheio de filhos, nem divorciado vem parar num lugar destes porque fica idiota, mais burro ainda, e pior, brocha”.
- Ei, quanto?, perguntou ele enquanto circundava como o dedo a azeitona no copo largo de Dry Martini que pedira há dois minutos.
Ela ouviu a pergunta como se não fizesse parte da cena. O cara era  realmente direto e isso despertava nela um estranho desconforto.
- O que? Quanto? Você fala como se tivesse convicção de quem eu sou e do que eu quero, disse ela tentando disfarçar o embaraço.
- Uma noite, quanto você quer por esta noite?
- Qual o seu nome?, ela quis saber sem conseguir esconder a necessidade de ganhar tempo para pensar.
- Victor, só Victor, mas o que um nome tem com isso?
- Ora, nome é sempre nome e serve para o que sempre serviu. As pessoas são quem são porque têm um nome.
Dando de ombros, Victor emendou:
- Eu não sei o seu e você pode bem servir para o que eu preciso sem que eu jamais saiba seu nome. Um nome é só um nome, não tem relação alguma com identidade, personalidade. Nome é uma referência que foi criada quando as pessoas começaram a ter medo (ou preguiça) de perceber o que realmente importa nos outros.
- E o que importa no outro, senhor filósofo anônimo?
- Mais que qualquer outra coisa... Deixa pra lá. Vai me dar um preço ou não?
- Mil. Duas horas apenas. E é Samantha.
- Pago o dobro pela noite toda, mas sem meias verdades. Eu não pedi, mas se quer me dar o nome, fale a verdade.
 O coração de Samantha quase lhe atravessou a garganta. A ideia é que ele não aceitasse. No fundo, não queria que aceitasse. Teve medo. “Medo? Dele ou do que ele dizia?”. Só porque não o conhecia não significava que fosse um louco sadomasoquista. Súbito,  vieram- lhe cenas de Snuff Movies que ela imaginara ao ler uma ficção a respeito.
Mas por algum motivo oculto, tratou de contrariar a si mesma. Por ter sentido medo, resolveu entrar no jogo.
- Ok, venceu mais uma. Eu aceito, mas vá sabendo que não faço...
- Não se preocupe, sou bastante convencional. Quem sabe até monótono. Não vou exigir nada que você não queira.
- Aff... Monotonia é tudo que eu não preciso hoje. Mas vá lá.
- E o nome?
- Você não dá valor... deixou claro isso – disfarçou ela.
- Agora que mentiu, quero saber.
- Não menti, omiti. É Clara. Meu nome é Maria Clara, mas eu o-d-e-i-o Maria. Desse jeito então, só Clara.
***

O modo seco de Victor parecia não acompanhá-lo mais. Quis saber de Clara se o apartamento dele lhe seria inconveniente, enquanto abria a porta do Citroën. “Carro de velho”, pensou ela ao mesmo tempo que sorriu alto da pergunta.
Do apartamento, nenhuma surpresa. Talvez o nervosismo não permitisse que ela prestasse muita atenção no ambiente. Notou porém uma organização e uma limpeza atípicas para alguém potencialmente solteiro, quase que certamente divorciado.
- Aposto que você é desses malucos intelectualoides que trazem a mulher para cá, pagam caro e querem passar a noite batendo papo, chorando mágoas e falando mal da ex-futura-esposa. A frase foi dita na ansiedade de quebrar o gelo e ela se arrependeu um segundo depois. Já era tarde.
Sem demonstrar qualquer expressão de contrariedade, Victor aproximou-se sem liberá-la o olhar. Em silêncio, ela sentiu que seus seios tocavam o peito de Victor, que suas pernas e sua cintura a milímetros de distância provocavam nela uma descarga tal de adrenalina que sentiu o arrepio subir-lhe pelas costas. 
“Tem alguma coisa errada”. Clara perdera o controle da situação. Sentia medo, mas uma excitação nova roubava-lhe a razão. De repente parou de pensar e deixou-se envolver pelas mãos que já percorriam suas costas, sua nuca e, lentamente, passaram a desvendar seu corpo. Sem poder se dar conta de nada, viu-se nua sobre o tapete da sala e algo naquele olhar do estranho dava-lhe a certeza de que deveria se entregar. Lenta e delicadamente, Victor a cobriu com seu corpo e entregou-se, enfim, ao calor de um momento que há muito ele não conseguia desfrutar. Desde agora, nada mais foi lento e nada mais tão delicado. Toda racionalidade deu lugar a instintos expressos em sons e em suor. No final, o sorriso, o cansaço... e o vazio.

***

- Por que eu?
- O que?
- É, por que você me escolheu naquele bar?
- Eu não te escolhi, você puxou papo. E por que?
- É, mas você gostou de mim.
Victor silenciou.
- Você é divorciado, certo? Digo, já foi casado.
- Já, já fui casado.
- E não deu certo?
- Claro que deu.
- Então, por que não usa mais aliança?
- Não estamos mais juntos, então, não tem porque usar aliança.
- Ok, não quer falar sério! Típico: marido entediado resolve sair e mudar de ares. Tira a aliança e aqui estamos. Eu não ligo pra isso. Sério mesmo, pouco importa se você trai ou não sua mulher. Os homens, todos eles, entram nas relações com uma determinação clara: conquistar a mulher e se desafiar, diariamente, com outras. Então, você não é...
- Eu fui casado sim. Fomos casados durante quatro anos e meio, mas ela se foi.
- Fugiu com outro? Olha, essas coisas acontecem com...
- Morreu há 28 dias. Esclerose Lateral Múltipla, doença neurológica que destrói a proteção isolante dos neurônios e que é comum em mulheres entre 20 e 30 anos de idade. Minha mulher morreu aos 32 anos. Literalmente, ‘entrou em curto-circuito’.
Clara sentiu o sangue preencher seu rosto mas não disse nada. Calou-se por um longo minuto até que Victor ajudou-a a recobrar a consciência:
- Não se preocupe, não teria dado certo.
- O que você está dizendo? Seu casamento não teria dado certo?
- Claro que não.
- Estavam tendo problemas?
- Não. Estávamos bem.
- Então?
- A questão é que casamento é apenas uma das expressões que o homem criou para suprir angustias de sua alma. Tal como o nome. E como tudo que compõe nossa vida com esse propósito medíocre, torna-se apenas um ciclo.
- Para você, então, nenhum casamento pode dar certo. Não é meio radical?
- Para mim, toda relação, todo casamento tende a dar certo. É aí que você se engana. Enquanto o ciclo não se fecha, pode-se dizer que tudo deu certo. No meu caso deu e a morte da minha mulher veio para interromper nosso ciclo antes que ele se fechasse. Esses são os amores eternos. Mas só estes. É a sensação de nossos avós.
- Relações para a vida inteira! – disse Clara em tom de ironia.
- Até que morte separe a todos. Ou o ciclo.
- Victor, preciso te contar uma coisa porque não fui totalmente sincera com você.
- Você está liberada da regra da verdade. Estou feliz com você como é. Algumas verdades são capazes de matar e é melhor que não sejam reveladas.
- É, mas neste caso, eu prefiro que você guarde a imagem de quem eu sou realmente.
- Não vou guardar por muito tempo, acredite...
Silêncio.
- Antes de descobrir a doença de minha mulher fui a um pneumologista por causa de dores no peito. Em dois dias eu estava internado com diagnóstico de câncer de mediastino, uma das formas mais agressivas que um carcinoma pode assumir. Achei que teria o privilegio da melhor morte. Mas o presente foi dela.
- Melhor morte? Ficou louco? Presente?
- Se eu pudesse escolher a hora da minha morte, teria partido há seis meses atrás. Eu estava no auge, feliz. As pessoas deveriam ter o direito de morrer enquanto estão muito bem, mas em geral isso assusta. Pense se não é injusto morrer em sofrimento, doente. Eu vou morrer assim.
Clara levantou-se, vestiu suas roupas em silêncio.
- O que as pessoas mais dizem é que fulano era um coitado porque morreu numa fase tão boa, saúde de ferro. Ninguém percebe o privilégio que é.
Abrindo a carteira, Victor contou o dinheiro e pensou no número do telefone dela, mas desistiu de pedir.
- Obrigado, mas não quero seu dinheiro – disse Clara sem olhar para ele.
Victor claramente não entendeu.
- Na verdade, eu não sou prostituta. Nunca fui e não estava trabalhando. Eu esperava uma amiga que simplesmente não apareceu. Vi você, resolvi me desafiar e puxar assunto. A coisa fluiu e a ideia de você pensando que eu queria dinheiro em troca de sexo me causou um sobressalto. Susto no começo, excitação logo depois. Acho que enlouqueci e aceitei.
- Mas... você... quem...
- Não precisa saber mais de mim. Sou uma mulher qualquer que acredita no ciclo, mas só no ciclo da vida. Eu ainda prefiro pensar que amores podem durar mais.
- Entendo.
- Ah! Você me perguntou porque resolvi puxar papo. Acho que, de alguma maneira, vi em você minha necessidade de pensar em mim, de repensar minha vida. Você me fez questionar muitas coisas só com o olhar. Acertei na mosca.

***

Clara resolveu caminhar alguns quarteirões antes de pegar um taxi para casa. Não aceitou a carona de Victor, quis deixá-lo ali, definitivamente. Ele lhe dera tudo em pouco mais de 2 horas e ela não queria ir além.
“Morrer quando se está bem”. Era disso que ela estava precisando. Uma voz e um mantra que a fizesse querer estar bem sempre. O medo de arriscar acaba por desvanecer quando a vida e a morte escancaram suas faces de forma tão nua. Aquele dia seria, para ela, um princípio... seu pequeno ponto de partida.
Pegou o celular e ligou para a amiga que não aparecera no bar...

***

2 comentários:

  1. Dani, gostei muito do teu texto... talvez imaginação minha, mas tive a impressão de reconhecer algumas coisas...O curso está te fazendo muito bem! Bjos.

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  2. Oi Daniel! Acabei de ler sua postagem no meu blog. De 88 comentários, só o seu não era spam. Por pouco não jogo o bebê junto com a água de banho...
    Rapaz, que mundo pequeno. Os veterinários acabam se encontrando. E pelo que estou percebendo, os veterinários-escritores principalmente.
    Achei legal que você está numa área relativamente nova - a odontologia veterinária - e pelo que pude ver, está indo muito bem. Parabéns. Mas se você gosta de escrever, tirou a sorte grande, porque é uma forma de realização muito diferente do mundo acadêmico científico. E eu, apesar das toneladas de trabalho com aulas, orientações e pesquisa, tenho uma realização especial quando escrevo minhas crônicas e quando encontro leitores delas.
    Sabia que um professor da vet posentado publicou um livro de contos? Talvez ele não tenha dado aula pra você: Benjamin Malucelli, da Patologia.

    Achei muito legal vc ter entrado em contato, porque basicamente não tenho quase ninguém para trocar ideias sobre criação lietarária; e pelo seu blog vc parece curtir isso. Tem muita coisa escrita?
    O texto que está no seu blog é seu?
    Caso vc ache mais tranquilo responder por correio eletrônico, aí vai meu e-mail: microbiologia@microbiologia.vet.br

    abração!

    Alexandre

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